Ainda hoje, a natureza do númeno encontra-se envolvida em questões de difícil clarificação, e o mesmo é verdadeiro se consideramos a sua própria existência ou, antes, a justificativa que se dá para a sua suposta existência. Em outras palavras, poucos assuntos serão tão misteriosos e abstrusos em matéria de filosofia e ontoepistemologia. Por um lado, se consideramos o númeno como o objeto entendido de modo independente da cognição e da sensação - e vejam que, pela sua própria definição, a distinção sujeito-objeto se reduz aqui a uma nulidade -, então damos logo de cara com um ente que é, por sua essência mesma, incognoscível, e a barreira intransponível da incognoscibilidade suscita em nós a dúvida de sua própria existência, porque, com certeza, aquilo que não pode ser conhecido e só mal pode ser imaginado não há de passar de uma simples fantasia, pura quimera, produto de elucubrações vãs, desconectadas da realidade e carentes de qualquer conteúdo mais profundo. Entretanto, se admitimos a existência de qualquer tipo de ideias inatas, de toda e qualquer maneira de pressupostos apriorísticos intrínsecos, a existência do númeno não só nos parecerá mais lógica e razoável como tornar-se-á uma absoluta necessidade, já que, se entendemos que a capacidade racional e sensível se dá e passa a existir por intermédio de noções que antecedem ao berço, então é preciso aceitar que este princípio imanente da razão, este logos inerente ao homem, sendo uma centelha, uma repartição do princípio total da razão do cosmos, do logos universal (porque, se existe esta coisa a que damos o nome de razão, deve originar-se naquilo que é maior e anterior e prosseguir sempre de modo a penetrar naquilo que é menor e posterior, moldando-o), transparece e, com efeito, assume o aspecto de uma existência real unicamente à guisa da incompletude, da imperfeição, da fragmentariedade, subsistindo de maneira sempre limitada, uma vez que não se identifica totalmente com o princípio anterior e superior ao qual pertence e do qual não é senão uma pequena parcela. Assim, na medida em que é incorporado de forma tão precária no ser vivente, uma minúscula fagulha, uma porção quantificável do inquantificável, uma parte finita do infinito, explicam-se também as insuficiências do raciocínio humanas, a nossa incapacidade de compreender conceitos relativos ao númeno, ao todo, ao universo enquanto tal, como a infinitude do tempo, do espaço etc., ao passo que este mesmo princípio que para nós é como uma mortalha e uma corrente transforma-se também naquele que de igual maneira nos compele a aceitar a necessidade da existência transcendental do númeno, por mais que não a entendamos perfeitamente.
Ora, a existência evidente de noções inatas tais como as do tempo e do espaço nos remete a uma inevitável conclusão: este princípio da razão, este logos que tudo abarca, de que estivemos falando, há de encontrar-se na própria matéria, sobretudo enquanto é uma faceta da matéria realmente existente. Do contrário, se admitimos que este princípio se origina no homem ou em qualquer outra coisa de menor porte do que o todo, teríamos então de conceber o devir das coisas pequenas e posteriores a partir das maiores e anteriores como se se desse fora da própria causalidade, porque, finalmente, fora da própria razão - o que seria, evidentemente, um absurdo. Assim, se coisas tais como as noções do tempo e do espaço são ideias inextricavelmente fundidas em nossas consciências, pressupostos apriorísticos anteriores a toda sensação, porque são as pressuposições mesmas da própria sensação, torna-se forçoso considerar, então, que talvez nem mesmo a ideia da espaço-temporalidade seja uma propriedade do númeno, na medida em que nunca travamos contato direto com quaisquer formas de existência espacial ou temporal de caráter inequivocadamente transcendental. Ao contrário, a única coisa a respeito da qual podemos ter certeza é que no númeno deve existir alguma propriedade que explique a existência do espaço e do tempo tornada efetiva através das sensações. Desta forma, no próprio númeno deve se encontrar o princípio da razão responsável pela geração das aparências, da sensação, da representação etc. e, portanto, nele deverá se encontrar também a própria causalidade e, consequentemente, o próprio movimento. O mesmo é verdadeiro também relativamente à matéria, por mais que, no númeno, exista fora do espaço (assim como, no númeno, também o movimento deve existir fora do tempo), já que este logos, este princípio da razão, a que temos acesso, provirá inevitavelmente da própria matéria, assim como nela há de se encontrar, estando inseparavelmente unido a ela. Ora, que às propriedades do númeno deva pertencer o movimento é algo evidente por si só, já que, sendo todo, infinito e plenamente realizado - ato puro, segundo a terminologia de Aristóteles -, pode, não obstante, gerar um universo inteiro de vãs aparências, tal como é igualmente evidente que às suas propriedades deve pertencer também a forma genérica da matéria, uma vez que todo e qualquer logos é inseparável da corporalidade por meio da qual se exprime e faz-se entender. Assim, o númeno é dotado de materialidade e mobilidade, embora não de espacialidade nem de temporalidade, porque é, ao mesmo tempo, por um lado, móvel e mutável e, por outro, completo e perfeito. Ora, como poderia assim não ser, se é, em um só tempo, todo e parte, infinito e finito, coisa em si e fenômeno? Como poderia não ser assim, se é incompreensível, estranho ao homem e à sua razão e, não obstante, o pressuposto mesmo da própria razão, necessário e salutar como a água e a nutrição, mas, paradoxalmente, a antítese daquilo que sustenta e vivifica, como se fosse a doença mesma a causa da saúde, como se a perversão e o mal fossem a origem e a frutificação da virtude e de tudo aquilo a que damos o nome de bem? Vejam que a única maneira possível de conceber o númeno, nestas condições, é considerá-lo provido de movimento e de corporeidade e, ao mesmo tempo, negar-lhe as dimensões do tempo e do espaço.
No mais, o númeno deve ser, necessariamente, um só. Não poderia ser múltiplo porque, se fosse, chocar-se-ia com os outros númenos e isto, como se pode ver, pressuporia algum tipo de espacialidade. Além disso, é uno também porque, sendo incognoscível, isto é, sendo verdadeiramente incompreensível para as mentes humanas, com as suas muitas limitações, não se identifica com qualquer coisa quantificável ou representável por meio de numerais, já que o próprio número e as quantidades pertencem à ordem das realidades puramente fenomênicas, não sendo as limitações da quantidade e do número propriedades do númeno, uma vez que é, ao mesmo tempo, todo e parte, infinito e finito, embora convenha, no entanto, associá-lo às características do singular como uma forma de transpassar para o cognoscível a sua essência incognoscível. Assim, vemos que, quando buscamos entender os objetos de nossas intelecções e sensações independentemente delas mesmas (e de nós mesmos), torna-se impossível tomá-los por entes limitados, sobretudo quantitativamente, já que a própria limitação dos objetos nos é imposta pelo arcabouço apriorístico de que não podemos, sob hipótese alguma, nos livrar. Sendo evidente então que, se não é limitado, é ilimitado, logicamente, sendo ilimitado, só poderá ser uno, e também este todo, enquanto é uno, não poderá ser definido negativamente, na medida em que é infinito e fora do infinito não há nada. Portanto, não é infinito porque fora dele nada há, já que até o nada é alguma coisa. Assim, o todo, sendo infinito, é, inversamente, aquilo que tudo abarca, ou seja, alcança até mesmo o nada e toda a vasta e infindável gama das vãs aparências. Ora, que assim seja é evidente porquanto o númeno, sendo o objeto entendido de modo independente de toda cognição e de toda sensação, isto é, sendo o objeto entendido em si mesmo, a despeito das aparências, também é a própria aparência em estado embrionário, uma vez que as aparências mesmas não poderiam ser senão uma decorrência dele. Eis, pois, explicada a natureza do númeno: o númeno não é - para dizê-lo simplesmente - senão Deus, e nada menos do que Deus, pois é, em um só e mesmo tempo, o finito e o infinito, a linha, a zona limítrofe após a qual nada há, assim como, também, a reta inacabável que desconhece tanto princípio quanto fim, e cujo meio não se pode determinar; ele é o sublunar e o supralunar, o ato e a potência, o móvel e o imóvel, o caos e a ordem, mas sobretudo o caos, que o homem não pode ver senão como ordenação e razão, a justa medida a navegar pelas torrentes cósmicas do indecifrável, do inapreensível, que por ser tão impalpável está tanto fora como dentro de nós, uma vez que não está em lugar nenhum (com efeito, nem mesmo há lugares...). O númeno é tudo isso e mais os tantos outros adjetivos e metáforas que se queira associar a ele. (Ivan Preuss)
Ora, a existência evidente de noções inatas tais como as do tempo e do espaço nos remete a uma inevitável conclusão: este princípio da razão, este logos que tudo abarca, de que estivemos falando, há de encontrar-se na própria matéria, sobretudo enquanto é uma faceta da matéria realmente existente. Do contrário, se admitimos que este princípio se origina no homem ou em qualquer outra coisa de menor porte do que o todo, teríamos então de conceber o devir das coisas pequenas e posteriores a partir das maiores e anteriores como se se desse fora da própria causalidade, porque, finalmente, fora da própria razão - o que seria, evidentemente, um absurdo. Assim, se coisas tais como as noções do tempo e do espaço são ideias inextricavelmente fundidas em nossas consciências, pressupostos apriorísticos anteriores a toda sensação, porque são as pressuposições mesmas da própria sensação, torna-se forçoso considerar, então, que talvez nem mesmo a ideia da espaço-temporalidade seja uma propriedade do númeno, na medida em que nunca travamos contato direto com quaisquer formas de existência espacial ou temporal de caráter inequivocadamente transcendental. Ao contrário, a única coisa a respeito da qual podemos ter certeza é que no númeno deve existir alguma propriedade que explique a existência do espaço e do tempo tornada efetiva através das sensações. Desta forma, no próprio númeno deve se encontrar o princípio da razão responsável pela geração das aparências, da sensação, da representação etc. e, portanto, nele deverá se encontrar também a própria causalidade e, consequentemente, o próprio movimento. O mesmo é verdadeiro também relativamente à matéria, por mais que, no númeno, exista fora do espaço (assim como, no númeno, também o movimento deve existir fora do tempo), já que este logos, este princípio da razão, a que temos acesso, provirá inevitavelmente da própria matéria, assim como nela há de se encontrar, estando inseparavelmente unido a ela. Ora, que às propriedades do númeno deva pertencer o movimento é algo evidente por si só, já que, sendo todo, infinito e plenamente realizado - ato puro, segundo a terminologia de Aristóteles -, pode, não obstante, gerar um universo inteiro de vãs aparências, tal como é igualmente evidente que às suas propriedades deve pertencer também a forma genérica da matéria, uma vez que todo e qualquer logos é inseparável da corporalidade por meio da qual se exprime e faz-se entender. Assim, o númeno é dotado de materialidade e mobilidade, embora não de espacialidade nem de temporalidade, porque é, ao mesmo tempo, por um lado, móvel e mutável e, por outro, completo e perfeito. Ora, como poderia assim não ser, se é, em um só tempo, todo e parte, infinito e finito, coisa em si e fenômeno? Como poderia não ser assim, se é incompreensível, estranho ao homem e à sua razão e, não obstante, o pressuposto mesmo da própria razão, necessário e salutar como a água e a nutrição, mas, paradoxalmente, a antítese daquilo que sustenta e vivifica, como se fosse a doença mesma a causa da saúde, como se a perversão e o mal fossem a origem e a frutificação da virtude e de tudo aquilo a que damos o nome de bem? Vejam que a única maneira possível de conceber o númeno, nestas condições, é considerá-lo provido de movimento e de corporeidade e, ao mesmo tempo, negar-lhe as dimensões do tempo e do espaço.
No mais, o númeno deve ser, necessariamente, um só. Não poderia ser múltiplo porque, se fosse, chocar-se-ia com os outros númenos e isto, como se pode ver, pressuporia algum tipo de espacialidade. Além disso, é uno também porque, sendo incognoscível, isto é, sendo verdadeiramente incompreensível para as mentes humanas, com as suas muitas limitações, não se identifica com qualquer coisa quantificável ou representável por meio de numerais, já que o próprio número e as quantidades pertencem à ordem das realidades puramente fenomênicas, não sendo as limitações da quantidade e do número propriedades do númeno, uma vez que é, ao mesmo tempo, todo e parte, infinito e finito, embora convenha, no entanto, associá-lo às características do singular como uma forma de transpassar para o cognoscível a sua essência incognoscível. Assim, vemos que, quando buscamos entender os objetos de nossas intelecções e sensações independentemente delas mesmas (e de nós mesmos), torna-se impossível tomá-los por entes limitados, sobretudo quantitativamente, já que a própria limitação dos objetos nos é imposta pelo arcabouço apriorístico de que não podemos, sob hipótese alguma, nos livrar. Sendo evidente então que, se não é limitado, é ilimitado, logicamente, sendo ilimitado, só poderá ser uno, e também este todo, enquanto é uno, não poderá ser definido negativamente, na medida em que é infinito e fora do infinito não há nada. Portanto, não é infinito porque fora dele nada há, já que até o nada é alguma coisa. Assim, o todo, sendo infinito, é, inversamente, aquilo que tudo abarca, ou seja, alcança até mesmo o nada e toda a vasta e infindável gama das vãs aparências. Ora, que assim seja é evidente porquanto o númeno, sendo o objeto entendido de modo independente de toda cognição e de toda sensação, isto é, sendo o objeto entendido em si mesmo, a despeito das aparências, também é a própria aparência em estado embrionário, uma vez que as aparências mesmas não poderiam ser senão uma decorrência dele. Eis, pois, explicada a natureza do númeno: o númeno não é - para dizê-lo simplesmente - senão Deus, e nada menos do que Deus, pois é, em um só e mesmo tempo, o finito e o infinito, a linha, a zona limítrofe após a qual nada há, assim como, também, a reta inacabável que desconhece tanto princípio quanto fim, e cujo meio não se pode determinar; ele é o sublunar e o supralunar, o ato e a potência, o móvel e o imóvel, o caos e a ordem, mas sobretudo o caos, que o homem não pode ver senão como ordenação e razão, a justa medida a navegar pelas torrentes cósmicas do indecifrável, do inapreensível, que por ser tão impalpável está tanto fora como dentro de nós, uma vez que não está em lugar nenhum (com efeito, nem mesmo há lugares...). O númeno é tudo isso e mais os tantos outros adjetivos e metáforas que se queira associar a ele. (Ivan Preuss)
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