quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Sobre a teleologia na natureza

  Qual é a finalidade deste mundo? Há uma causa final para que tudo tende? Propomo-nos investigar esta questão, que é - creiam ou não - muito menos trivial do que porventura possa parecer. Antes de tudo, comecemos por dizer que só há propósito na medida em que há uma distinção primeira e fundamental, a saber, aquela que existe entre o sujeito e o objeto, porque, naturalmente, se algo tem um propósito, este algo se coloca automaticamente como objeto em relação ao sujeito que é o seu fim, isto é, o próprio propósito, enquanto se entende como propósito, subordina aquilo que a ele tende, objetificando-o e, assim, colocando-se enquanto sujeito em relação ao objeto objetificado. Daí decorre que o propósito (e toda teleologia) não passa da maneira humana de entender as coisas, não existindo finalidade para que o universo, entendido em si mesmo, possa tender, uma vez que é uno e se tendesse para si mesmo já não o seria, porquanto constituiria, por um lado, sujeito e, por outro, objeto.
  Mas nas coisas e no mundo humanos tudo - ou quase tudo - tem um propósito aparente. As mãos servem para apanhar, os dentes para mastigar, as pernas para correr e caminhar e por aí vai. Ora, se, então, existe, pelo menos em uma realidade subalterna e inferior, esta coisa a que damos o nome de finalidade ou de propósito, como poderia surgir a partir de um universo que, entendido em si mesmo, não tem nenhuma causa final, qualquer que seja? Eis aí a próxima questão que nos assoma à mente, e a resposta é a seguinte: o propósito ou a finalidade são uma faceta da razão das coisas, mas não a razão em si mesma, ou, mais especificamente, eles são uma projeção humana da razão (talqualmente humana) que sujeita tudo aos critérios apriorísticos intrínsecos ao homem. Em outras palavras, sempre que dissemos que algo tem um propósito intrínseco, quando não tratamos de coisas que foram criadas por um ser consciente do propósito dado, com um verdadeiro fim em mente, não fazemos mais do que projetarmo-nos na realidade circundante e, por assim dizer, antropomorfizá-la.
  Com efeito, quanto mais nos distanciamos do mundo imediatamente humano dos nossos arredores, mais ininteligível qualquer propósito que possa existir há de nos parecer. As árvores buscam o alto para melhor absorverem a energia luminosa do Sol, mas com que propósito realizam todos os seres vivos essa estranha dança, essa coreografia de lutas e de disputas recíprocas em que quase sempre um parece se beneficiar a despeito do outro? Se disséssemos que isto não serve senão para o propósito de perpetuar a vida na Terra, estaríamos dizendo uma coisa tão vaga que seria o mesmo que efetivamente dizer "não tem propósito algum" ou, simplesmente, "nada". E as leis da física? E as moções e transformações da matéria inanimada, para que servem todas elas? Menos substancial ainda seria qualquer resposta. Por isso dizemos que, ao passo que estas forças da natureza constituem, sim, uma vontade, uma vez que manifestam certa ordem e um determinado princípio ou conjunto de princípios gerais que as reúnem em um todo coerente, tal vontade é, não obstante, cega, isto é, não adere a nenhuma finalidade nem aparente, nem real. Podemos notar, então, diferentes graus de deslegitimação da teleologia no ascenso das coisas humanas rumo às distantes e abstrusas, culminando com o próprio númeno, que prescinde absolutamente de qualquer propósito.
  Entretanto, uma vez que consideramos os limites da cognoscibilidade humana, não há como negar a importância dos fins e a sua realidade enquanto fundamento mesmo de toda experiência. Quando abrimos os olhos, quando apanhamos os objetos do nosso dia a dia, quando sentimos cheiros e gostos, quando nos concentramos para melhor distinguirmos a origem e as qualidades dos sons, em suma, quando entramos em contato com o mundo exterior, todo um universo é criado mediante a nossa ação consciente, desaparecendo no momento em que dormimos e sendo recriado no instante em que, mais uma vez, acordamos, e tudo isso com o propósito evidente de servir aos nossos desígnios, porquanto todas as ações humanas - ou, pelo menos, as voluntárias - são dotadas de uma finalidade, e, se assim são, então todo o material de que dispomos para a realização dessas ações (ou seja, o mundo sensível como criação subjetiva que existe unicamente em nossas consciências) só se justifica enquanto é o objeto do sujeito que nós somos, isto é, só se justifica enquanto instrumento a ser utilizado para os fins que existem em nós mesmos e em nossas consciências. Daí decorre que o mundo, entendido como fenômeno, é constantemente criado e recriado para o deleite e o recreio de seu criador mesmo, isto é, o homem. (Ivan Preuss)

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