sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Uma simples meditação

  O pior sofrimento a que se pode submeter um homem não é a dor lancinante dos suplícios, nem o martírio religioso ou político, nem a degeneração da idade, nem o declínio promovido pelas doenças, assim como, também, não são os horrores da guerra e as suas consequências que porventura ocuparão este grau de superlativa aflição. Tudo isto passa: as dores do corpo, antes de tudo, porque o corpo é mortal; degenera-se, desfaz-se, desaparece e logo dele não restam mais do que simples fotografias e representações que, também, por sua vez, degenerar-se-ão e corromper-se-ão, até que, depois de tantas batalhas perdidas contra o tempo, só uma tênue memória resta, e então nem isto. As dores da alma, de uma forma similar, só duram o tempo que durar a sua estadia neste mundo, de modo que, uma vez que tenha subido lá em cima, já não dá mais pelo que ocorreu cá embaixo. A memória da dor, pois, é breve, e dentro em pouco pode-se contar com a sua cessação ou por meio dos desmembramentos da matéria, ou através da reabsorção do princípio anímico particular no todo inteligente da Alma Universal.
  Mas quando o sofrimento é coletivo, quando temos não um homem, mas toda uma cosmópole que vive como que num suplício diário, um purgatório auto-imposto, aí, sim, encontramos o grau máximo da miséria, não propriamente coletiva, porque turba nenhuma sente qualquer coisa que seja (com efeito, apenas o homem é capaz de sentir), mas individual, porque a pior coisa é saber que os outros sofrem como nós sofremos; o pior é saber que, mesmo depois que morrermos, outros continuarão a penar, sucumbindo à ignorância, ao vício, à servidão, à corrupção e aos males de uma sociedade decadente, que rejeita a Verdade (ou nem isso, porque não se rejeita aquilo que nem sequer se conhece), que instrumentaliza o homem, que o bestifica, que não o deixa brilhar, constrangendo as suas vias de libertação e de enriquecimento intelectual antes mesmo delas desabrocharem em flor. Diante disto, tudo não poderia ser senão um mero passatempo e simples distração. Nada há que expie os pecados deste mundo, nada há que possa fazer a vida valer a pena. Amores, festas, abastanças - tudo são lapsos, tudo são momentos intermitentes de um breve descanso das rugas deste mundo hórrido, sem os quais o próprio mundo não poderia ser nem tão grotesco, nem tão mau, porque desabaria na sua própria feiura e ruindade.
  Pior ainda, entretanto, do que viver neste mundo sórdido, conhecendo os seus males, é nele viver sem nem ter noção, sequer, da desgraça de que se é vítima. Sim, porque, ainda menos preferível a ser escravo e ter consciência disto é obedecer às ordens dos outros e imaginar que elas partem do próprio coração. Menos desejável do que conhecer e odiar o cativeiro é pensar que não há cativeiro, assimilando a vista das barras de ferro com a própria situação e disposição interior. Não por acaso, na natureza, esta condição é reservada aos animais, que não têm outra ideia do que fazer senão servir ao homem, com isto contentando-se. Quem assim procede se condena à mais lamentável condição que há, que é a verdadeira servidão, aquela que não pertence só ao corpo, mas também à alma. Aí reside justamente o valor do sofrimento e da vicissitude dificultosa, oferecem-nos a possibilidade do engrandecimento moral, religioso e intelectual, sobretudo se "a alma não é pequena", como diz o Fernando Pessoa. Com efeito, tudo que é grande no homem vem daí. Sem esta faceta de nossa existência, sem o conhecimento dos males, dos entraves, das injustiças e das calúnias, nunca desenvolveríamos a força sobre-humana de que necessitamos para erguermo-nos e lutar. Não passaríamos de animais, criaturas medíocres aguardando pacientemente pela sua vez no abatedouro. No dia em que já não houver dor, ou então quando ninguém mais der pelos confins do cárcere, aí, sim, ver-se-á o Sol nascer quadrado, o último Sol, que será visto pelo último homem, porque depois disto nada mais existirá de verdadeiramente humano. (Ivan Preuss)

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