No que tange à filosofia no sentido mais geral, uma das problemáticas mais interessantes que nós podemos apreciar é a contradição existente entre a ideia de um comportamento ou conjunto de ações resultantes do livre-arbítrio e a necessidade aparente da causalidade no universo, isto é, a contradição que existe entre a necessidade de que as ações sejam causalmente determinadas e a liberdade que temos de tomar nossas próprias decisões. A possibilidade desta contradição já era concebida no mundo antigo: os estoicos acreditavam que o universo era regido por uma causalidade tão férrea que tudo se repetiria infinitamente, incluindo a redação deste artigo, que eu faço agora, e a leitura dele, que você, leitor, agora empreende, estando tudo que existirá, existe e jamais existiu sujeito a um eterno ciclo de geração e corrupção infindáveis. No entanto, acreditavam também no livre-arbítrio... Como conciliavam estas duas coisas? Eis aí uma questão para a qual a perda da maior parte do legado literário da Antiguidade nos priva de uma resposta definitiva. O que sabemos, entretanto, é que a ideia do livre-arbítrio é usada muitas vezes para justificar a responsabilidade moral de alguém por suas ações, mesmo desconsiderando como fatores externos podem tê-lo compelido a agir de uma determinada forma.
Considerando, então, que a causalidade é um fato necessário do mundo humano, e que, tendo nós a capacidade de escolher as nossas ações, tal capacidade é, não obstante, derivada causalmente do mundo exterior (porque o homem é menor do que o todo), não podemos falar, por conseguinte, de um livre-arbítrio em sentido estrito, mas, sim, de uma autonomia do agir do sábio e, particularmente, do filósofo. O que quero dizer é que, trazendo em si mesmos sempre a semente da dúvida e da indagação filosófica, o sábio e, mais especificamente, o filósofo, sempre cuidarão de meditar na justeza de suas ações, considerando pormenores, possibilidades diversas etc. e, assim, possuem uma autonomia de escolha que é análoga ao que poderíamos chamar de um livre-arbítrio. (Ivan Preuss)
sábado, 30 de novembro de 2024
O livre-arbítrio e a autonomia do filósofo
A geopolítica da Europa e o mito do "ocidente europeu"
Geograficamente, a Europa é uma península da Ásia, isto é, caracteriza-se como um apêndice do grande continente Euroasiático. Isto traz consequências para a sua geopolítica futura e é algo que pesou, durante toda a história da região, no desenvolvimento de certas tendências culturais e eventos históricos, mesmo os mais remotos. Vejam que isto não se trata de um simples fato geográfico: a Europa possui poucas invenções culturais - entre as dignas de nota - verdadeiramente autóctones, e as que possui são em sua maior parte invenções greco-latinas, isto é, são invenções justamente daqueles povos que se situavam na zona limítrofe da Europa e que maior contato tinham com as populações afro-asiáticas do oriente próximo. Delas herdaram a geometria, a matemática, a astronomia, a agrimensura, práticas religiosas etc... Mesmo depois de um período de prolongado contato entre ocidente e oriente, propiciado primeiro pelos reinos helenísticos, depois pelo Império Romano, a influência oriental mostrou-se determinante sobre a Europa: deu origem a todo um novo mundo forjado no fogo (às vezes literal) de uma religião e de uma religiosidade asiáticas, criou uma nova cultura que, ao passo que se situava geograficamente em solo europeu, expressava uma sensibilidade e uma maneira de ver o mundo em que o elemento asiático era determinante. De outro modo, no oriente próximo, as influências europeias foram rapidamente assimiladas em um todo cultural de caráter inequivocamente oriental, isto quando não foram simplesmente suprimidas ou esquecidas. Também a história revela que a Europa é um continente que não se basta a si mesmo: por repetidas vezes tiveram os europeus de deixar os confins de sua península e empreender conquistas de territórios asiáticos, tal como durante as cruzadas, com o expansionismo russo em relação à Sibéria e à Ásia central, por meio do colonialismo europeu etc. O que tudo isso demonstra é que a Europa necessita da Ásia muito mais do que a Ásia necessita da Europa, e no futuro nós poderemos sentir essa necessidade e essa dependência mútuas na cada vez mais imprescindível relação comercial, cultural e tecnológica com a China. Se continuarem as atuais tendências de enfraquecimento do imperialismo europeu na África (vide os recentes acontecimentos envolvendo a França e suas ex-colônias africanas) e de perda de uma já há muito tempo decadente projeção geopolítica, o que veremos é a transformação gradual, mas certa, da zona europeia em uma espécie de apêndice russo-chinês. Resta-nos saber como que as ações do recém-eleito e futuro presidente dos Estados Unidos influirão sobre o desenvolvimento deste quadro. (Ivan Preuss)
sexta-feira, 29 de novembro de 2024
Sobre a "democracia" burguesa moderna e a sua relação com a democracia antiga
Uma das ideias intelectualmente mais fraudulentas da nossa época é a noção de que a democracia ateniense antiga seria uma espécie de versão imperfeita da "democracia" burguesa moderna - mentira levada a cabo com o propósito evidente de justificar ideologicamente o regime político burguês, que é só uma democracia de fachada, ao passo que a democracia ateniense antiga era uma verdadeira democracia, pelo menos no sentido formal do termo. Ninguém que se proponha a estudar seriamente estes assuntos ignora a vasta gama de recursos que a classe dominante emprega para mistificar o processo eleitoral e velar a natureza da sublimação do poder desde as suas bases nos elementos mais simples da sociedade até os grandes chefes e caciques políticos, incluindo o controle da informação, a compra - implícita ou explícita - de votos e até a fraude eleitoral em sentido mais pleno, consumada através da execução de caprichos e arbitrariedades do judiciário que visam à manipulação das eleições (sem falar daquelas leis que, nas últimas décadas e em grande parte do mundo, foram responsáveis por suprimir diversas liberdades sob o pretexto do "terrorismo" e de outras - supostas - ameaças ao Estado).
Ora, que a "democracia" moderna não seja senão um pálido reflexo da democracia antiga é algo evidente a qualquer um que tenha examinado de perto, por exemplo, o julgamento de Sócrates. Os gregos tiveram o bom senso de considerar que a culpabilidade de um cidadão tão eminente quanto o filósofo, por mais que odiado por eles, não poderia depender de nada menos que a resolução de um tribunal do júri composto por mais de 500 cidadãos capazes, por lei, de ajuizarem a respeito de assuntos legais com a boa disposição de espírito e a índole altiva próprias do homem público dessa época. Em que "democracia" atual se poderia fazer esta mesma exigência? Pelo contrário, sendo forçado o cidadão a solicitar os serviços de advogados e de outros especialistas e tendo que navegar por um mar tempestuoso de burocracias confusas, a justiça vira um luxo. É verdade que os gregos não consideravam grande parte da massa urbana de suas capitais e colônias cidadãos, mas aos cidadãos davam-lhe plenos direitos, e esses direitos não ficavam apenas no papel, como ocorre na "democracia" moderna. Estavam em pleno acordo consigo mesmos. Não tinham hipocrisias, nem medo de dizer que determinados direitos não eram para todos. Os ideólogos da "democracia" moderna, ao contrário, afirmam sempre que todos têm os mesmos direitos e que todos são igualmente cidadãos, mas a realidade nunca acompanha estas palavras.
A verdade é que a democracia, entendida no sentido puramente formal do termo ou no sentido mais substancial do termo, é algo totalmente dispensável para a classe dominante no nosso mundo globalizado atual. Não são compelidos à manutenção de determinados direitos e preceitos democráticos por fidedigna convicção - originada, como era o caso dos gregos, na compreensão da unidade cívica da pólis -, mas, inversamente, prendem-se a um mero semblante de ideário progressista por pura conveniência política, isto é, para impedir a insatisfação popular e a convulsão social. Neste nosso mundo em que tudo tem, antes de mais nada, uma dimensão econômica, e a quantidade fala mais alto do que a qualidade, sentimos a falta do brio e da nobreza de espírito de outrora, e gostaríamos que os nossos líderes fossem tão ilustres quanto teria sido um Péricles, mas isso parece que é desejar demais... (Ivan Preuss)