Foro de Discussões Gerais

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Sobre a teleologia na natureza

  Qual é a finalidade deste mundo? Há uma causa final para que tudo tende? Propomo-nos investigar esta questão, que é - creiam ou não - muito menos trivial do que porventura possa parecer. Antes de tudo, comecemos por dizer que só há propósito na medida em que há uma distinção primeira e fundamental, a saber, aquela que existe entre o sujeito e o objeto, porque, naturalmente, se algo tem um propósito, este algo se coloca automaticamente como objeto em relação ao sujeito que é o seu fim, isto é, o próprio propósito, enquanto se entende como propósito, subordina aquilo que a ele tende, objetificando-o e, assim, colocando-se enquanto sujeito em relação ao objeto objetificado. Daí decorre que o propósito (e toda teleologia) não passa da maneira humana de entender as coisas, não existindo finalidade para que o universo, entendido em si mesmo, possa tender, uma vez que é uno e se tendesse para si mesmo já não o seria, porquanto constituiria, por um lado, sujeito e, por outro, objeto.
  Mas nas coisas e no mundo humanos tudo - ou quase tudo - tem um propósito aparente. As mãos servem para apanhar, os dentes para mastigar, as pernas para correr e caminhar e por aí vai. Ora, se, então, existe, pelo menos em uma realidade subalterna e inferior, esta coisa a que damos o nome de finalidade ou de propósito, como poderia surgir a partir de um universo que, entendido em si mesmo, não tem nenhuma causa final, qualquer que seja? Eis aí a próxima questão que nos assoma à mente, e a resposta é a seguinte: o propósito ou a finalidade são uma faceta da razão das coisas, mas não a razão em si mesma, ou, mais especificamente, eles são uma projeção humana da razão (talqualmente humana) que sujeita tudo aos critérios apriorísticos intrínsecos ao homem. Em outras palavras, sempre que dissemos que algo tem um propósito intrínseco, quando não tratamos de coisas que foram criadas por um ser consciente do propósito dado, com um verdadeiro fim em mente, não fazemos mais do que projetarmo-nos na realidade circundante e, por assim dizer, antropomorfizá-la.
  Com efeito, quanto mais nos distanciamos do mundo imediatamente humano dos nossos arredores, mais ininteligível qualquer propósito que possa existir há de nos parecer. As árvores buscam o alto para melhor absorverem a energia luminosa do Sol, mas com que propósito realizam todos os seres vivos essa estranha dança, essa coreografia de lutas e de disputas recíprocas em que quase sempre um parece se beneficiar a despeito do outro? Se disséssemos que isto não serve senão para o propósito de perpetuar a vida na Terra, estaríamos dizendo uma coisa tão vaga que seria o mesmo que efetivamente dizer "não tem propósito algum" ou, simplesmente, "nada". E as leis da física? E as moções e transformações da matéria inanimada, para que servem todas elas? Menos substancial ainda seria qualquer resposta. Por isso dizemos que, ao passo que estas forças da natureza constituem, sim, uma vontade, uma vez que manifestam certa ordem e um determinado princípio ou conjunto de princípios gerais que as reúnem em um todo coerente, tal vontade é, não obstante, cega, isto é, não adere a nenhuma finalidade nem aparente, nem real. Podemos notar, então, diferentes graus de deslegitimação da teleologia no ascenso das coisas humanas rumo às distantes e abstrusas, culminando com o próprio númeno, que prescinde absolutamente de qualquer propósito.
  Entretanto, uma vez que consideramos os limites da cognoscibilidade humana, não há como negar a importância dos fins e a sua realidade enquanto fundamento mesmo de toda experiência. Quando abrimos os olhos, quando apanhamos os objetos do nosso dia a dia, quando sentimos cheiros e gostos, quando nos concentramos para melhor distinguirmos a origem e as qualidades dos sons, em suma, quando entramos em contato com o mundo exterior, todo um universo é criado mediante a nossa ação consciente, desaparecendo no momento em que dormimos e sendo recriado no instante em que, mais uma vez, acordamos, e tudo isso com o propósito evidente de servir aos nossos desígnios, porquanto todas as ações humanas - ou, pelo menos, as voluntárias - são dotadas de uma finalidade, e, se assim são, então todo o material de que dispomos para a realização dessas ações (ou seja, o mundo sensível como criação subjetiva que existe unicamente em nossas consciências) só se justifica enquanto é o objeto do sujeito que nós somos, isto é, só se justifica enquanto instrumento a ser utilizado para os fins que existem em nós mesmos e em nossas consciências. Daí decorre que o mundo, entendido como fenômeno, é constantemente criado e recriado para o deleite e o recreio de seu criador mesmo, isto é, o homem. (Ivan Preuss)

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Uma simples meditação

  O pior sofrimento a que se pode submeter um homem não é a dor lancinante dos suplícios, nem o martírio religioso ou político, nem a degeneração da idade, nem o declínio promovido pelas doenças, assim como, também, não são os horrores da guerra e as suas consequências que porventura ocuparão este grau de superlativa aflição. Tudo isto passa: as dores do corpo, antes de tudo, porque o corpo é mortal; degenera-se, desfaz-se, desaparece e logo dele não restam mais do que simples fotografias e representações que, também, por sua vez, degenerar-se-ão e corromper-se-ão, até que, depois de tantas batalhas perdidas contra o tempo, só uma tênue memória resta, e então nem isto. As dores da alma, de uma forma similar, só duram o tempo que durar a sua estadia neste mundo, de modo que, uma vez que tenha subido lá em cima, já não dá mais pelo que ocorreu cá embaixo. A memória da dor, pois, é breve, e dentro em pouco pode-se contar com a sua cessação ou por meio dos desmembramentos da matéria, ou através da reabsorção do princípio anímico particular no todo inteligente da Alma Universal.
  Mas quando o sofrimento é coletivo, quando temos não um homem, mas toda uma cosmópole que vive como que num suplício diário, um purgatório auto-imposto, aí, sim, encontramos o grau máximo da miséria, não propriamente coletiva, porque turba nenhuma sente qualquer coisa que seja (com efeito, apenas o homem é capaz de sentir), mas individual, porque a pior coisa é saber que os outros sofrem como nós sofremos; o pior é saber que, mesmo depois que morrermos, outros continuarão a penar, sucumbindo à ignorância, ao vício, à servidão, à corrupção e aos males de uma sociedade decadente, que rejeita a Verdade (ou nem isso, porque não se rejeita aquilo que nem sequer se conhece), que instrumentaliza o homem, que o bestifica, que não o deixa brilhar, constrangendo as suas vias de libertação e de enriquecimento intelectual antes mesmo delas desabrocharem em flor. Diante disto, tudo não poderia ser senão um mero passatempo e simples distração. Nada há que expie os pecados deste mundo, nada há que possa fazer a vida valer a pena. Amores, festas, abastanças - tudo são lapsos, tudo são momentos intermitentes de um breve descanso das rugas deste mundo hórrido, sem os quais o próprio mundo não poderia ser nem tão grotesco, nem tão mau, porque desabaria na sua própria feiura e ruindade.
  Pior ainda, entretanto, do que viver neste mundo sórdido, conhecendo os seus males, é nele viver sem nem ter noção, sequer, da desgraça de que se é vítima. Sim, porque, ainda menos preferível a ser escravo e ter consciência disto é obedecer às ordens dos outros e imaginar que elas partem do próprio coração. Menos desejável do que conhecer e odiar o cativeiro é pensar que não há cativeiro, assimilando a vista das barras de ferro com a própria situação e disposição interior. Não por acaso, na natureza, esta condição é reservada aos animais, que não têm outra ideia do que fazer senão servir ao homem, com isto contentando-se. Quem assim procede se condena à mais lamentável condição que há, que é a verdadeira servidão, aquela que não pertence só ao corpo, mas também à alma. Aí reside justamente o valor do sofrimento e da vicissitude dificultosa, oferecem-nos a possibilidade do engrandecimento moral, religioso e intelectual, sobretudo se "a alma não é pequena", como diz o Fernando Pessoa. Com efeito, tudo que é grande no homem vem daí. Sem esta faceta de nossa existência, sem o conhecimento dos males, dos entraves, das injustiças e das calúnias, nunca desenvolveríamos a força sobre-humana de que necessitamos para erguermo-nos e lutar. Não passaríamos de animais, criaturas medíocres aguardando pacientemente pela sua vez no abatedouro. No dia em que já não houver dor, ou então quando ninguém mais der pelos confins do cárcere, aí, sim, ver-se-á o Sol nascer quadrado, o último Sol, que será visto pelo último homem, porque depois disto nada mais existirá de verdadeiramente humano. (Ivan Preuss)

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Sobre a necessidade de uma teologia popular operária

  Uma das falhas dos movimentos populares do passado foi a recusa de revestir a luta dos trabalhadores e dos povos do mundo de um manto de santidade e beatitude, empreendendo a criação de uma filosofia revolucionária abrangente, um sistema expansivo, mas coeso, que não deixasse de fora elementos da vida social como a religião, a escatologia, a moral transcendental etc. É lamentável que este terreno tenha sido explorado com tão pouco sucesso outrora e que aqueles que o exploraram tenham logo sofrido derrotas das quais não puderam se recuperar ou, então, tenham simplesmente considerado que o melhor a se fazer era ceder às tendências laicas e até antirreligiosas dos movimentos populares e de massa de suas épocas. Lamentável, sim, porque, na perspectiva dos populares e dos trabalhadores que lutam, a sua causa está irrevogavelmente inserida em um âmbito de anuência divina: veem a si mesmos como os representantes do Bem na Terra (e efetivamente o são), e às suas ações e anseios como manifestações da possibilidade de redenção deste nosso mundo que, em comparação com a realidade superior, divina e celeste, se encontra em um plano existencial mais baixo, material e decaído. Acima de nós, Deus, o Todo Poderoso, é a própria ideia do Bem a reinar nos céus, por sobre nós. O capitalismo, força verdadeiramente demoníaca, representação da potência torpe da matéria, transforma-se, então, em algo que é muito mais do que um simples sistema econômico. É o próprio triunfo do corpo sobre a mente, das tentações da sensualidade, do pecado, da gula, da luxúria etc. sobre as exigências intelectuais da Justiça, do Belo e do Bem. Trata-se inconfundivelmente de uma luta entre os bons e os maus, entre Deus e satanás, e a recusa de uma esquerda "esclarecida", que considera infantil esta visão moral e religiosa do mundo, só afasta e aliena o cidadão comum, que nada quer saber sobre sistemas econômicos, o imperialismo ou sobre a divisão internacional do trabalho, mas que quer, sim, antes de mais nada, ter o que comer, ter como alimentar os seus filhos e a sua esposa e que a justiça e a virtude reinem inquestionáveis no Brasil e, se possível, em todo o mundo. As imensas manifestações operárias dos anos finais da ditadura, em que a participação clerical e o caráter religioso dos atos foram fatos marcantes, são a prova cabal de que o povo anseia por lutar ao lado do Arcanjo Miguel, e também é prova disto o fato de que as forças do mal, isto é, os Estados Unidos da América, suas agências de inteligência e inúmeros tentáculos, passaram os últimos 40 anos tentando destruir o catolicismo no Brasil e substituir a teologia da libertação católica pela espúria, farsesca e grotesca "teologia da prosperidade" protestante. Neste momento mesmo em que escrevo, uma parte não desprezível da intelectualidade católica brasileira perde o seu tempo com a realização entusiástica de exercícios mentais de uma escolástica vazia, sem sentido, que não os vai levar a lugar algum, ao passo que as forças do mal só avançam e avançam... A eles eu digo: acordem! (Ivan Preuss)

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Sobre o númeno

  Ainda hoje, a natureza do númeno encontra-se envolvida em questões de difícil clarificação, e o mesmo é verdadeiro se consideramos a sua própria existência ou, antes, a justificativa que se dá para a sua suposta existência. Em outras palavras, poucos assuntos serão tão misteriosos e abstrusos em matéria de filosofia e ontoepistemologia. Por um lado, se consideramos o númeno como o objeto entendido de modo independente da cognição e da sensação - e vejam que, pela sua própria definição, a distinção sujeito-objeto se reduz aqui a uma nulidade -, então damos logo de cara com um ente que é, por sua essência mesma, incognoscível, e a barreira intransponível da incognoscibilidade suscita em nós a dúvida de sua própria existência, porque, com certeza, aquilo que não pode ser conhecido e só mal pode ser imaginado não há de passar de uma simples fantasia, pura quimera, produto de elucubrações vãs, desconectadas da realidade e carentes de qualquer conteúdo mais profundo. Entretanto, se admitimos a existência de qualquer tipo de ideias inatas, de toda e qualquer maneira de pressupostos apriorísticos intrínsecos, a existência do númeno não só nos parecerá mais lógica e razoável como tornar-se-á uma absoluta necessidade, já que, se entendemos que a capacidade racional e sensível se dá e passa a existir por intermédio de noções que antecedem ao berço, então é preciso aceitar que este princípio imanente da razão, este logos inerente ao homem, sendo uma centelha, uma repartição do princípio total da razão do cosmos, do logos universal (porque, se existe esta coisa a que damos o nome de razão, deve originar-se naquilo que é maior e anterior e prosseguir sempre de modo a penetrar naquilo que é menor e posterior, moldando-o), transparece e, com efeito, assume o aspecto de uma existência real unicamente à guisa da incompletude, da imperfeição, da fragmentariedade, subsistindo de maneira sempre limitada, uma vez que não se identifica totalmente com o princípio anterior e superior ao qual pertence e do qual não é senão uma pequena parcela. Assim, na medida em que é incorporado de forma tão precária no ser vivente, uma minúscula fagulha, uma porção quantificável do inquantificável, uma parte finita do infinito, explicam-se também as insuficiências do raciocínio humanas, a nossa incapacidade de compreender conceitos relativos ao númeno, ao todo, ao universo enquanto tal, como a infinitude do tempo, do espaço etc., ao passo que este mesmo princípio que para nós é como uma mortalha e uma corrente transforma-se também naquele que de igual maneira nos compele a aceitar a necessidade da existência transcendental do númeno, por mais que não a entendamos perfeitamente.
  Ora, a existência evidente de noções inatas tais como as do tempo e do espaço nos remete a uma inevitável conclusão: este princípio da razão, este logos que tudo abarca, de que estivemos falando, há de encontrar-se na própria matéria, sobretudo enquanto é uma faceta da matéria realmente existente. Do contrário, se admitimos que este princípio se origina no homem ou em qualquer outra coisa de menor porte do que o todo, teríamos então de conceber o devir das coisas pequenas e posteriores a partir das maiores e anteriores como se se desse fora da própria causalidade, porque, finalmente, fora da própria razão - o que seria, evidentemente, um absurdo. Assim, se coisas tais como as noções do tempo e do espaço são ideias inextricavelmente fundidas em nossas consciências, pressupostos apriorísticos anteriores a toda sensação, porque são as pressuposições mesmas da própria sensação, torna-se forçoso considerar, então, que talvez nem mesmo a ideia da espaço-temporalidade seja uma propriedade do númeno, na medida em que nunca travamos contato direto com quaisquer formas de existência espacial ou temporal de caráter inequivocadamente transcendental. Ao contrário, a única coisa a respeito da qual podemos ter certeza é que no númeno deve existir alguma propriedade que explique a existência do espaço e do tempo tornada efetiva através das sensações. Desta forma, no próprio númeno deve se encontrar o princípio da razão responsável pela geração das aparências, da sensação, da representação etc. e, portanto, nele deverá se encontrar também a própria causalidade e, consequentemente, o próprio movimento. O mesmo é verdadeiro também relativamente à matéria, por mais que, no númeno, exista fora do espaço (assim como, no númeno, também o movimento deve existir fora do tempo), já que este logos, este princípio da razão, a que temos acesso, provirá inevitavelmente da própria matéria, assim como nela há de se encontrar, estando inseparavelmente unido a ela. Ora, que às propriedades do númeno deva pertencer o movimento é algo evidente por si só, já que, sendo todo, infinito e plenamente realizado - ato puro, segundo a terminologia de Aristóteles -, pode, não obstante, gerar um universo inteiro de vãs aparências, tal como é igualmente evidente que às suas propriedades deve pertencer também a forma genérica da matéria, uma vez que todo e qualquer logos é inseparável da corporalidade por meio da qual se exprime e faz-se entender. Assim, o númeno é dotado de materialidade e mobilidade, embora não de espacialidade nem de temporalidade, porque é, ao mesmo tempo, por um lado, móvel e mutável e, por outro, completo e perfeito. Ora, como poderia assim não ser, se é, em um só tempo, todo e parte, infinito e finito, coisa em si e fenômeno? Como poderia não ser assim, se é incompreensível, estranho ao homem e à sua razão e, não obstante, o pressuposto mesmo da própria razão, necessário e salutar como a água e a nutrição, mas, paradoxalmente, a antítese daquilo que sustenta e vivifica, como se fosse a doença mesma a causa da saúde, como se a perversão e o mal fossem a origem e a frutificação da virtude e de tudo aquilo a que damos o nome de bem? Vejam que a única maneira possível de conceber o númeno, nestas condições, é considerá-lo provido de movimento e de corporeidade e, ao mesmo tempo, negar-lhe as dimensões do tempo e do espaço.
  No mais, o númeno deve ser, necessariamente, um só. Não poderia ser múltiplo porque, se fosse, chocar-se-ia com os outros númenos e isto, como se pode ver, pressuporia algum tipo de espacialidade. Além disso, é uno também porque, sendo incognoscível, isto é, sendo verdadeiramente incompreensível para as mentes humanas, com as suas muitas limitações, não se identifica com qualquer coisa quantificável ou representável por meio de numerais, já que o próprio número e as quantidades pertencem à ordem das realidades puramente fenomênicas, não sendo as limitações da quantidade e do número propriedades do númeno, uma vez que é, ao mesmo tempo, todo e parte, infinito e finito, embora convenha, no entanto, associá-lo às características do singular como uma forma de transpassar para o cognoscível a sua essência incognoscível. Assim, vemos que, quando buscamos entender os objetos de nossas intelecções e sensações independentemente delas mesmas (e de nós mesmos), torna-se impossível tomá-los por entes limitados, sobretudo quantitativamente, já que a própria limitação dos objetos nos é imposta pelo arcabouço apriorístico de que não podemos, sob hipótese alguma, nos livrar. Sendo evidente então que, se não é limitado, é ilimitado, logicamente, sendo ilimitado, só poderá ser uno, e também este todo, enquanto é uno, não poderá ser definido negativamente, na medida em que é infinito e fora do infinito não há nada. Portanto, não é infinito porque fora dele nada há, já que até o nada é alguma coisa. Assim, o todo, sendo infinito, é, inversamente, aquilo que tudo abarca, ou seja, alcança até mesmo o nada e toda a vasta e infindável gama das vãs aparências. Ora, que assim seja é evidente porquanto o númeno, sendo o objeto entendido de modo independente de toda cognição e de toda sensação, isto é, sendo o objeto entendido em si mesmo, a despeito das aparências, também é a própria aparência em estado embrionário, uma vez que as aparências mesmas não poderiam ser senão uma decorrência dele. Eis, pois, explicada a natureza do númeno: o númeno não é - para dizê-lo simplesmente - senão Deus, e nada menos do que Deus, pois é, em um só e mesmo tempo, o finito e o infinito, a linha, a zona limítrofe após a qual nada há, assim como, também, a reta inacabável que desconhece tanto princípio quanto fim, e cujo meio não se pode determinar; ele é o sublunar e o supralunar, o ato e a potência, o móvel e o imóvel, o caos e a ordem, mas sobretudo o caos, que o homem não pode ver senão como ordenação e razão, a justa medida a navegar pelas torrentes cósmicas do indecifrável, do inapreensível, que por ser tão impalpável está tanto fora como dentro de nós, uma vez que não está em lugar nenhum (com efeito, nem mesmo há lugares...). O númeno é tudo isso e mais os tantos outros adjetivos e metáforas que se queira associar a ele. (Ivan Preuss)

Sobre a relatividade do tempo

  Já parou para se perguntar, leitor, que coisa é o tempo? A resposta é menos surpreendente do que porventura possa parecer. No sentido mais estrito, o tempo nada é senão a dimensão em que o movimento se dá, sendo, portanto, uma decorrência dele, assim como o espaço é a dimensão em que a matéria existe, dela sucedendo. No uso vulgar, tempo e movimento se misturam. Quando perguntamos "quanto tempo se passou?", queremos na verdade saber quanto movimento ocorreu, porque, se não houvesse movimento, não haveria tempo, e se não há tempo, não faz sentido perguntar quanto dele se passou, nem ao menos poderíamos fazê-lo. Com efeito, o tempo, sendo simplesmente a dimensão que o movimento pressupõe, não possui a característica de existir em maior ou menor quantidade. O tempo simplesmente é. Para ajudar a ilustrar este ponto, imaginem um gráfico em que houvesse exposta a quantidade de pessoas em uma casa. Não importa saber a que horas exatamente esta quantidade aumenta ou diminui, mas simplesmente representar a modificação de uma variável em um quadro temporal limitado. Num primeiro momento, temos uma única pessoa, depois duas, depois uma de novo. Na forma de um gráfico, teríamos duas dimensões: uma vertical, representando a quantidade de pessoas, e outra horizontal, representando os momentos no tempo em que as variações ocorreram. Vejam que a única coisa que se modifica quantitativamente é o número de pessoas. Não existe "mais tempo" no momento em que a quantidade de pessoas na casa passa de 2 para 1, assim como não existe "menos tempo" no momento em que ela passa de 1 para 2. O tempo é, simplesmente, o pressuposto apriorístico do movimento, e sempre que medimos o tempo, medimos na verdade a quantidade de movimento que se processou em relação a um determinado referencial.
  Isto se torna evidente pelo fato de que, quando medimos o tempo, sempre o medimos em relação a um referencial que é, evidentemente, local. Quando queremos, mesmo sem o acesso a relógios, ter alguma noção das horas, recorremos ao nosso "relógio interno", que conta a passagem do tempo com base na nossa própria percepção subjetiva da sucessão temporal. A experiência demonstrará que duas pessoas diferentes nunca experimentarão a passagem do tempo de forma absolutamente idêntica, e a razão disto é porque o referencial em relação ao qual a passagem do tempo é sentida não é o mesmo para ambas as pessoas. Desta forma, mais tempo pode se passar para um ao passo que menos tempo pode se passar para o outro, isto é, mais movimento (do pensamento, da sensibilidade, das funções fisiológicas etc.) pode ocorrer em um do que há de ocorrer no outro, revelando a subjetividade desta maneira de medir o tempo justamente aquilo em que insistimos anteriormente, a saber, que não é o tempo que se adiciona ou subtrai, constituindo maiores ou menores somas, é, alternativamente, o movimento que ocorre em quantidades que são maiores ou menores. O tempo, diferentemente, existe em nossas mentes sobretudo como criação das capacidades da memória e do entendimento, nascido a partir da operação mental de fusão da experiência presente, da recordação do que se processou e da expectativa do que há de acontecer que, unidos em uma coisa só, formam uma linha infinita de sucessões e causalidades que se estende de um passado infinitamente pregresso até um futuro infinitamente longínquo. Assim, não há, absolutamente, nem mais tempo decorrido, nem mais movimento ocorrido em um momento que é posterior ao outro, já que, em uma linha do tempo infinita, qualquer momento que nela se encontre há de ter sido precedido por uma extensão infinita de tempo, mas, antes, recorda-se, no total, mais movimento ocorrido naquele momento do que neste, porque, quando comparado com o momento posterior, o momento anterior ainda está parcialmente por ocorrer. 
  Consequentemente, se desta linha do tempo infinita, composta de ilimitadas sucessões temporais, dispostas causalmente, retiramos arbitrariamente um trecho, cortando-a em dois pontos, podemos considerar, embora ilusoriamente, que há mais movimento ocorrido em um momento do tempo que é posterior ao outro, embora a própria noção de que há momentos posteriores e anteriores seja em si mesma enganosa, porque se todos os momentos são precedidos por infinitos momentos, isto é, se todos os momentos são igualmente precedidos por uma quantidade infinita de tempo, então não há, efetivamente, momentos posteriores e momentos anteriores. Ora, é evidente que esta distinção só é possível mediante o estabelecimento por deliberação de um ponto a ser tomado como o início de uma determinada marcação do tempo, mas uma vez que ele é definido e se ignora a infinitude do tempo, podem-se constatar velocidades diferentes de movimentos distintos, isto é, em uma determinada quantidade de tempo - ou seja, simultaneamente à ocorrência de uma certa quantidade de movimento - há maiores ou menores quantidades de outros movimentos. É isto o que significa a relatividade do tempo. O que pela ciência nos foi revelado ser relativo não é, portanto, o tempo entendido propriamente, mas o movimento ou, antes, um determinado referencial que existe enquanto realidade subjacente por detrás de todo movimento. É o próprio movimento, pelo menos de uma região específica do cosmos, que, ocorrendo de maneira sincrônica, obedece a um determinado ritmo que se desdobra, por sua vez, dos princípios constitutivos mais básicos do universo. Em outras palavras, tudo aquilo que é capaz de mover-se poderá se mover a diferentes velocidades. Ora, isto é óbvio! Se é o próprio universo ou a mente de um rato que o faz, pouco importa. (Ivan Preuss)

Ciência e epistemologia: um problema?

  Há quem diga que a filosofia se tornou obsoleta. Geralmente, quem diz isto diz também que ela foi superada pela ciência, mas seria isto mesmo assim? Antes de responder propriamente a esta questão, façamos algumas considerações preliminares sobre a ciência moderna. Em primeiro lugar, a ciência se caracteriza como uma espécie de empirismo do senso comum, isto é, ela aceita sem questionar os pressupostos implícitos da sensibilidade. Se um raio atinge um avião, podemos estudar dos pontos de vista da física e da química como este fenômeno é possível, mas para isto deve aceitar-se que existe mesmo um avião, que existe mesmo um raio, que existe mesmo um meio - o ar - através do qual o raio alcançou o avião, que estas três coisas, a saber, o raio, o avião e o meio são realmente distintas, caracterizadas de uma determinada forma e, finalmente, que o raio realmente atingiu o avião. Como podemos ver, são muitos os pressupostos implícitos que servem de base para as operações das ciências, e os quais elas não se propõem a questionar.
  Ora, isto tem lá a sua razão. A ciência dos nossos dias não existe no vácuo, mas surge e se justifica para responder a determinadas necessidades da sociedade burguesa. Assim, prende-se a uma certa tecnicalidade ou materialidade implícitas. Este é o nosso segundo ponto. Por se ater sempre à materialidade dos fenômenos, a ciência não é capaz de conceber a realidade numenal, assim como é incapaz de demonstrar que todo e qualquer sentido da existência se esgota no fenomênico. Se, como Anaximandro, considerarmos que tudo quanto existe hoje tem a sua origem num ponto determinado no tempo - no nosso caso, os instantes imediatamente posteriores ao Big Bang -, e se quisermos explicar esta mutabilidade do cosmos através de uma substância ou qualidade única, elementar, mediante a qual a transformação é possível - mas cuja existência é concebida de modo puramente numenal, sendo imperceptível aos sentidos e apreensível somente pelo intelecto -, tal conjetura terá um valor científico desprezível e encontrará respaldo somente na tradição filosófica. E, não obstante, a razão nos compele a aceitar que tal substância é não só lógica, mas necessária, uma vez que, se tudo que existe hoje passou a existir não só depois do Big Bang, mas por causa dele, então deve haver alguma propriedade que torne possível o surgimento das coisas não só depois do Big Bang, mas por meio dele. Esta propriedade pode ser discutida no âmbito da ciência, por exemplo, quando se estudam as transformações da matéria responsáveis pela existência do universo atual, originado de seus estágios arcaicos e anteriores, mas o fato é que, quando falamos das transformações dos elementos da realidade, de coisas se tornando outras coisas, existe aí uma dimensão metafísica intransponível que a ciência fica impossibilitada de examinar.
  Sejamos um pouco mais específicos. Quando dizemos que dos instantes imediatamente posteriores ao Big Bang surgiu tudo quanto hoje existe, queremos dizer pelo menos duas coisas. Primeiro, que o universo tal como existiu nos primórdios foi - ou continha em si - aquilo que é responsável por colocar e manter em movimento todo o processo de desenvolvimentos causais que eventualmente resultaria no cosmos tal como existe hoje - ou, na linguagem de Aristóteles, que esse universo dos primórdios é (ou contém em si) a causa eficiente do cosmos dos nossos dias -, e, segundo, que tudo que existe hoje é composto da mesma matéria e da mesma substância das quais era composto o universo arcaico e anterior, apenas modificada e reconstituída sob novas formas - ou, na terminologia aristotélica, que essa substância em comum é a derradeira causa material de todo o cosmos. Vejam, porém, que mesmo aqui ainda há pressupostos implícitos. Se, por exemplo, eu cortar um pedaço de madeira e fizer dele uma tábua, o que me garante que o material desta tábua é o mesmo que o da madeira que a ela deu origem? Por que não haveria um deus ou um demônio ou um gênio que, toda vez que eu cortasse a madeira e a transformasse em tábua, vá lá e substitua o material desta tábua por algo inteiramente novo e distinto, sem que eu nem sequer me dê conta disso? A diferença fundamental, percebam, é que a filosofia pode, sim, reavaliar todos os seus pressupostos, a ciência, não.
  O ponto em questão aqui se resume no fato de que a ciência não pode levar em consideração o problema das suas pressuposições porque, se o fizesse, já não seria mais ciência, perderia a qualidade instrumental que a torna tão eficiente na previsão e na descrição do comportamento dos fenômenos. Só o filosofo é capaz de reconsiderar os pressupostos da própria filosofia e, ainda assim, continuar sendo, no campo efetivo da práxis, um sujeito que filosofa, ou seja, alguém que exerce na prática as atribuições características do filósofo. A ciência tomou da filosofia o método cético da Idade Moderna e deu-lhe uma aplicação convenientemente limitada, adequando-o às necessidades prático-empíricas da burguesia ascendente. Mas, assim como os pensadores de outrora invocavam o princípio da superioridade ontológica do imaterial sobre o material, sobretudo para justificar a existência de uma "alma do mundo", também nós poderemos dizer que a aplicação limitada (isto é, no campo material) de um princípio mais geral (quer dizer, fundamentalmente metafísico) nunca resultará num estado de coisas ontoepistemologicamente superior àquele que sucederia se este mesmo princípio fosse, naturalmente, entendido na generalidade que lhe é não só devida, mas originalmente própria.

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  Em estudos que se dedicam a versar sobre questões de epistemologia, convém começar por aquilo que é mais importante, seguindo a tradição iniciada pelos antigos filósofos jônicos, que se punham a discursar sobre a natureza no sentido mais amplo do termo. É necessário, no entanto, retificar um antigo erro, que é aquele mediante o qual o mundo exterior - ou o absoluto - é colocado em primeiro plano. Ao contrário, é o homem que é a origem de todas as intuições e demais operações mentais, e assim é ele quem deve ser considerado o objeto privilegiado de nosso inquérito. Se as coisas existem independentemente do homem, é certo que pelo menos ficam sujeitas às condições de cognoscibilidade mediante as quais adquirimos a consciência de sua existência, condições estas que são, por sua vez, determinadas pelas características perceptíveis do sujeito cognoscente. Algum de vocês poderia levantar a objeção de que isto é o mesmo que dizer que a percepção é condicionada pelas características da percepção, que, por sua vez, são o resultado da própria percepção - ou seja, que o que foi dito é um exemplo de lógica circular -, e, não obstante, o que acabam de ler - tanto uma como a outra coisa - permanece absolutamente válido. Como um princípio, é sem qualquer sombra de dúvida que podemos afirmar que o conhecimento é condicionado pelas condições da cognoscibilidade, simplesmente porque, sempre que se fala de conhecimento, fala-se também de um sujeito que conhece. O ponto em questão consiste justamente em saber, no âmbito particular, até quando e de que maneira estas condições afetam o que é conhecido, e, no geral, qual a relação existente entre o sujeito cognoscente e o objeto do conhecimento entendido de forma independente, isto é, qual a relação existente entre o sujeito e o númeno.
  Na prática, esta dinâmica se faz evidente mesmo durante o nascimento. Quando se dá a luz a um bebê, uma coisa digna de nota acontece: ele chora. Dizem os entendidos que a penetração do ar pelas narinas, preenchendo as vias aéreas e os pulmões, provoca uma sensação de queima, mas o fato é que ninguém se recorda das sensações que experimentou quando era ainda um recém-nascido. Outro fato diz respeito à interpretação deste fenômeno: é evidente que, logo após e mesmo durante o nascimento, a presença do mundo exterior é sentida pela primeira vez sob a forma de dor, como uma agressão. O mundo exterior, alheio ao "eu", se insinua sobre o indivíduo com todos os característicos da violência, uma violação tão poderosa que a criança não pode nem olhar para os outros homens e mulheres que tão ansiosamente a aguardam do outro lado do ventre, já que fecha os olhos e se encerra em si mesma. A dor e a violência, no entanto, cumprem aqui um papel educativo fundamental, porque é através delas que a criança se torna capaz de evoluir nos estágios do seu percurso de desenvolvimento natural, rumo à maturidade. Este fato confere à condição humana um sentido teleológico: o homem é trazido para este mundo para sofrer. Escapar ao sofrimento é virtualmente impossível. Mais: ele nasce já preso às correntes do querer, seu primeiro ato nesta Terra é um ato de querer, que é o desejo da cessação da dor. As implicações deste fato são profundas porque, como vocês devem saber, uma criatura que fundamentalmente só se preocupa em escapar à dor e fomentar o prazer não pode ser considerada um provedor de testemunhos particularmente confiável, nem em matérias do direito, nem no campo da ontologia.
  De mais a mais, por mais que para um recém-nascido o sentido da existência, o significado mesmo da realidade se esgote na dor causada pelo contato violento com o mundo, é evidente que nem um único indivíduo de nossa espécie terá, passados os momentos iniciais da infância, a mesma opinião que outrora teve a respeito das sensações que constituem o universo entendido como um fenômeno, coisa que vocês devem considerar, porque serve de motivo para o nosso ceticismo. Se em nossas vidas já houve um momento em que possuíamos uma visão tão limitada do mundo, o que nos garante que, se comparada com o universo tal como ele realmente é - isto é, com o universo enquanto númeno -, a nossa compreensão da realidade não seja igualmente limitada, por analogia tão ou ainda mais ingênua e infantil? Este é um ponto importante sobretudo porque razões para duvidar dos sentidos há muitas, mas vejam: para um recém-nascido, não são só os sentidos que atuam para corroborar a tese de que o significado do mundo se esgota na dor. Se, mesmo desde a mais tenra idade, há na criança um princípio de razão - e tudo indica que há, sim, este princípio -, também esta razão deve atuar de modo que a dor seja elevada à categoria de elemento explicativo máximo da realidade, e, com efeito, se recém-nascidos fossem capazes de filosofar, elaborariam filosofias nesse sentido. Ultimamente, até mesmo a credibilidade da razão pode ser posta em dúvida com base, por exemplo, na sua incapacidade aparente de transcender a si mesma, de compreender o logos das coisas enquanto logos que existe verdadeiramente nas coisas, e não simplesmente enquanto logos do homem que é projetado sobre as coisas.
  Mas a propriedade significativa da razão não é a sua pretensa capacidade de discriminar elementos ou qualidades verdadeiras acerca do real. Sua derradeira propriedade não é ontológica, mas epistemológica: ela nos compele a aceitar uma determinada coisa simplesmente porque, quando tudo o mais é considerado, não há outras alternativas. Assim, a razão é, no mínimo, uma força imperiosa que encontramos em nosso seio que, como a própria experiência pessoal há de confirmar, revela-se o melhor guia de que dispomos para avançar pelas veredas tortuosas da realidade, uma modesta luz de vela a iluminar um mundo naturalmente obscuro. Verdade é que não se equipara ao brilho de uma lanterna, mas entre cegos e ceguetas, que já há muito se põem a vagar por este mundo mal iluminado, em que só esporadicamente se vê um raio de sol, até mesmo a luz de um vaga-lume sucederá em esclarecer muitas coisas.

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  Voltando agora para o problema da ciência, cumpre aqui frisar as limitações da investigação empírica. O método científico depende da disponibilidade constante de evidências e, assim, faz-se inútil quando elas eventualmente se tornam indisponíveis. Além disso, como o conhecimento científico tem por ponto de partida sempre a empiria, toda ciência tem por objeto a matéria e os seus efeitos, já que só a matéria e os seus efeitos são empiricamente observáveis, e, portanto, ocorre que é impossível conceber cientificamente um universo em que a matéria não seja o princípio explicativo fundamental da realidade, isto é, não é possível elaborar uma conceitualização científica do cosmos fora do materialismo. Isto se dá por uma decorrência do próprio método empírico-científico, já que, admitindo somente o observável como ponto de partida e fundamento primeiro da realidade, a ciência fica impossibilitada de explorar as hipóteses idealistas acerca da constituição do universo, porquanto estas hipóteses se baseiam na premissa de que o fundamento primeiro, o ponto de partida da realidade mesma, é o imaterial, isto é, justamente aquilo que é imanente e não-observável nas coisas.
  Ora, uma vez que aceitamos o que foi dito anteriormente, vejamos aonde isto há de nos levar. Em primeiro lugar, consideramos que não existe ciência fora do que é observável, mas o que é observável não só está sempre em movimento - o que é evidente por si só -, é observável justamente porque se insere no domínio daquilo que se move, visto que o próprio ato de observação é movimento. Assim, sem o movimento, a própria observação é impossível, do que decorre que não haveria nem empiria e, por conseguinte, nem ciência, se não houvesse o movimento. Portanto, é necessário que a compreensão materialista da ciência acerca do cosmos tenha o movimento e, consequentemente, o tempo como pontos de partida. Entretanto, como vimos, toda ciência tem por objeto a matéria e os seus efeitos, do que sucede que, se a compreensão materialista da ciência tem o movimento e, por conseguinte, o tempo como pontos de partida, também deverá ter a matéria e, consequentemente, o espaço como pontos de partida, porque aquilo que se move só se pode mover enquanto é uma decorrência da matéria que se move ou a própria matéria que se move. Alternativamente, se a compreensão materialista da ciência tem por ponto de partida a matéria, que entendemos como tendo a qualidade inerente de ser observável, tem como ponto de partida também o tempo, porque toda observação se dá num âmbito temporal. Desta forma, o conhecimento científico fica preso tanto à matéria como ao tempo, isto é, limita-se a um âmbito temporal-material-espacial.
  Estas são as restrições impostas pelo método empírico-científico: transcendê-las é impossível sem a modificação do paradigma epistemológico subjacente. Conferindo-lhes a forma de premissas e conclusões, temos o que se segue:

  §1. Tudo é matéria e movimento. Matéria e movimento são indissociáveis. O primeiro o é em relação ao segundo porque, por um lado, o próprio ato de experiência da realidade material, porquanto implica numa ação, é movimento, e, por outro, se se concebe a matéria sem experiência, ela já não é matéria. O segundo o é em relação ao primeiro porque não há movimento sem o que é movido, e se o que é movido não é matéria, pressupõe de alguma forma a matéria.

  §2. Se se acredita que o movimento não existe, deve-se demonstrar a sua inexistência, e qualquer demonstração desse gênero deverá pressupor, necessariamente, o movimento, do que sucede que tal demonstração é impossível. Se, diversamente, acredita-se que o movimento é uma ilusão, então se deverá indicar a fonte de tal ilusão, e como a própria causalidade é movimento, não se poderá estabelecer uma causa sem que assim se pressuponha o movimento, do que sucede que também esta demonstração é impossível.

  §3. O mesmo é válido se se acredita que o movimento teve início fora do próprio movimento, porque se teve início fora do próprio movimento, então foi causado por alguma outra coisa sem que assim se pressuponha o movimento, o que é um absurdo.

 §4. Como o movimento nem inexiste, nem é ilusório e nem se origina fora do próprio movimento, conclui-se que ele é eterno.

  §5. Se o movimento é eterno, manifestando-se sempre através de algo que é movido, então algo capaz de ser movido deve existir eternamente.

  §6. Se, como vimos, o que é movido e não é matéria pressupõe, no entanto, a matéria, e se, como vimos, algo capaz de ser movido deve existir eternamente, então também a matéria deve existir eternamente.

  §7. Movimento e matéria existem eternamente.

  Vejam que não afirmamos que o movimento e a matéria são positivamente eternos, apenas que sua eternidade é uma conclusão natural das premissas empíricas do método científico, isto é, das suas pressuposições mais elementares, não podendo, portanto, ser refutada com base em pressupostos epistemológicos de ordem empírico-científica. Toda afirmação do contrário só é possível se se ignora a contradição que inevitavelmente resulta da negação da matéria e do movimento com base em tais pressuposições. Mas, com efeito, se aqui há o ensejo de fazer uma pequena observação, e se considerarmos que o movimento alguma vez não existiu, então, naturalmente, ele teria de ser criado fora do próprio movimento, o que é, evidentemente, um absurdo, e, de igual modo, se a matéria já não existiu, então também ela teria de ser criada a partir daquilo que não é matéria, e esta é - poder-se-ia dizer - uma possibilidade anticientífica, já que diz respeito ao âmbito epistemológico próprio da filosofia, não da ciência. Para concluir, permitam-me voltar ao início e dizer que também isto serve como uma demonstração da utilidade e atualidade da filosofia, que nunca se tornará obsoleta, salvo se morrer o último homem que se põe a vagar por esta Terra, ou se se apagar a derradeira luz que o alumia e que o mundo clareia. (Ivan Preuss)

domingo, 1 de dezembro de 2024

A busca da purificação na filosofia

  Quando entendidos em um sentido pessoal, a filosofia ou o espírito filosófico são uma busca, não casual, fortuita ou acidental, mas metódica e até mesmo programática da verdade e da sabedoria, mas, antes de tudo, a filosofia é, também, uma busca da purificação da própria experiência, uma eterna procura e descoberta de um livramento dos males deste mundo, não como simples remédio ou suporte moral, necessário nas adversidades como um macaco na hora de trocar um pneu, mas como uma tentativa de superação das próprias limitações da condição humana. O filósofo, tendo os seus olhos voltados costumeiramente para o céu, sempre tendeu a considerar que os problemas humanos estavam, de certa forma, abaixo de sua consideração - não totalmente, porque se assim fosse a ética não teria vindo a ser, mas parcialmente, quero dizer, o filósofo não raramente teria se considerado imperturbável diante de simples querelas, intrigas, picuinhas e, até mesmo, do sofrimento humano de uma forma mais geral. Para estes e outros problemas tinha sempre uma mesma solução: olhar para as estrelas, considerar a infinidade e a vastidão do cosmos, a pequeneza da condição e da duração da vida humanas, a inferioridade do homem em relação a Deus etc. Afinal, os problemas humanos parecem pequenos quando consideramos a dimensão titânica do todo real. 
‎ ‎ Uma das maneiras como os filósofos empreendiam isto era através da assimilação do eu individual, isto é, do mundo psíquico interior, com o universo ou ideia do universo enquanto infinidade exterior, isto é, com o mundo exterior que não é, simplesmente, exterior e alheio, porque contém também o mundo interior, mas é exterior e interior ao mesmo tempo, ou seja, é infinito justamente porque não conhece limites nem exteriormente nem interiormente. É a Unio Mystica com o divino; nas filosofias de Plotino e de Fílão de Alexandria, é o êxtase da união epifânica com Deus, propiciado depois de anos de árduos estudos e de muita meditação e contemplação da beleza universal. Este elemento ético-religioso da tradição filosófica é um dos mais fundamentais e antigos, remontando aos tempos de Empédocles e Pitágoras, e para muitos filósofos foi a base de toda ética e de toda religiosidade. (Ivan Preuss)